OS TÉCNICOS AUXILIARES DE SAÚDE

AS FORMIGUINHAS DO HOSPITAL: OS TÉCNICOS AUXILIARES DE SAÚDE

Já lá vão trinta anos. O mês de Maio viera quente, salpicado de trovoadas. Estava a trabalhar no cemitério dos Prazeres. Nesse tempo estudava os discursos simbólicos na arquitetura funerária que se traduziram na publicação de um ensaio – Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário. Infelizmente está esgotado.

Estava quente e transpirado e soube-me bem a curta chuva que uma trovoada ali deixou. Mal sabia que esse alívio quase me mataria. O corpo quente contraiu bruscamente e foi com uma enorme dor de cabeça que saí do cemitério. A pernas pesavam, à minha frente a rua balançava e a visão era turva. Procurei chegar ao carro e pedir ajuda. E de súbito, perdi os sentidos. Acordei, já não recordo quanto tempo depois, nos Cuidados Intensivos do Hospital de Santa Maria. Foi então que soube que sofrera um acidente isquêmico cerebral e a mais angustiante verdade: O lado direito do meu corpo estava debilitado. Sem força na perna, no braço e a face rígida.

À minha volta estavam vários médicos (ou assim me pareceram) e enfermeiros. O mais velho, percebendo a minha aflição, foi perentório:

– Não se vá abaixo. O senhor vai recuperar. É uma questão de tempo.

No dia seguinte, soube que estivera três dias numa sonolência confusa, transferiram-me para o Hospital Garcia da Orta e foi aí que conheci o Dr. Coimbra.

Nunca mais o esqueci. Competente, dedicado, empenhado nos seus doentes. Explicou-me o que acontecera, que medicação haveria de tomar, os métodos de recuperação para fazer uma vida normal. Dia após dia, aquela alma voltava. Preocupado e diligente.

– Tem que fazer um esforço para andar. Tem que fazer movimentos com o braço e com a mão. Se não conseguirmos aqui, vai para Alcoitão. É demasiado jovem e vai recuperar.

Entrei em desespero. Não sentia dores. Apenas insensibilidade. Cada passo era um inferno. Apertar uma pequena bola com a mão, um verdadeiro pesadelo. Não havia computadores. Escrevo com caneta e sabia que a minha vida estava destruída se não melhorasse. Tudo deixou de fazer sentido. A paixão da minha vida estava morta. Os livros que bailavam dentro de mim jamais sairiam da minha cabeça. O prazer da escrita fora interrompido e, nos piores pesadelos, para sempre.

Foi, então, que surgiram as formiguinhas. Chamam-lhes Técnicos Auxiliares. Passavam várias vezes pelos quartos dos doentes, conversas animadas para estimular a vontade e, certo dia, uma delas disse:

– Hoje não vai ficar no quarto. Eu ajudo-o a ir até à sala e come e confraterniza com outros doentes.

E gracejou:

– Agarre-se a mim. Não tenha medo de que eu não o como e toca a andar.

Eram vinte metros de corredor que me pareceram vinte quilómetros. Colocou-me um babete e declarou:

– Agora vamos comer!

Nos primeiros dias, era uma dessas formiguinhas que pegava na colher. Depois, essa ou outra, obrigou-me a pegar na colher e a levar a sopa à boca.

– Não faz mal, se entornar que eu limpo.

Dias depois, uma outra ordenou:

– Hoje não vai pendurado de mim. Agarra-se ao protetor da parede contra os estragos das macas e eu amparo-o. Vamos embora e com energia!

E eu, obediente, cumpri.

São formiguinhas. Os nomes ficam gravados no coração em vez de ficarem na memória. São os Técnicos Auxiliares, o patamar abaixo de enfermeiros e médicos. Trabalhadores valentes e rijos e ternos e doces.

Devo-lhe o início do fim da minha tristeza infinita quando conseguiu comer a primeira sopa, sob o olhar vigilante de uma delas, e não entornei no babete. E depois, outra vitória: fui para o quarto, apoiado na tábua que protege as paredes do choque das macas, com uma outra formiguinha por perto.

O Dr. Coimbra registava as melhoras com prazer e sentia que o sol, embora ainda não tivesse nascido, estava a despertar dentro de mim. Andava pelo quarto. Rodava até ao infinito os manípulos das portas. A enfermeira chefe autorizou que andasse pelo corredor, as vezes que entendesse, e as formiguinhas, vigilantes, encorajavam-me e, por vezes, batiam palmas como se as minhas tristes e pequenas vitórias sobre o meu corpo fossem a sua alegria. A fisioterapia ajudava mas o segredo estava na insistência, na repetição, na resistência ao esgotamento.

Muito tempo depois, faltava a prova dos nove. Subir escadas e pegar numa caneta para escrever. As primeiras palavras foram arrancadas do fundo da alma e sem alma, letra desgarrada, cansada. Uma das formiguinhas ordenou:

– Escreva a frase: Vou ficar bem!

Demorou cerca de dez minutos.

E ela:

Agora, torne a repetir.

Foi nessa noite que uma outra formiguinha escutou o meu anseio. Respondeu-me:

– Se quer tentar subir degraus, vou consigo de elevador até ao piso debaixo, e subimos pelas escadas. Não é lá muito regulamentar, mas eu ajudo-o.

Demorámos meia hora naquele calvário. Era um Cristo sem cruz, amparado por um anjo que não desistia das palavras de conforto.

Enchi cadernos com frases sem sentido. Pouco importavam. O exercício era escrever. Caminhei quilómetros suados e magoados sem ir a lado de nenhum para lá do serviço de Neurologia e das escadas de acesso. Com as formiguinhas sempre em volta, vigilantes, solidárias.

Meses depois, o inesquecível do Dr. Coimbra apertou-me a mão pela milésima vez e eu correspondi enérgico para sua grande alegria e sentenciou:

– Amanhã, vai ter alta! Não esqueça a medicação e o exercício. Parabéns!

Aproximei-me da janela do meu quarto. O temporal tinha passado. Olhei sem ver Almada e o Tejo lá ao fundo e não consegui conter as lágrimas de alívio misturadas com inebriante prazer de vitória.

Para trás, ficaria o Garcia da Orta, o Dr. Coimbra, enfermeiros de exceção e, acima de tudo, o bando de formiguinhas que tanto fizeram para que recuperasse.

Os anos passaram. Os Técnicos Auxiliares de Saúde continuam a ser os mais humildes entre os humildes servidores dos Hospitais. Mas são gigantes! Guardo-os todos no lugar do coração onde arrumo a gratidão e estou com eles sempre, agora mesmo, quando exigem melhores condições de trabalho. Que Deus os ajude, como me ajudaram a renascer!

Francisco Moita Flores

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